Escritura Pública como Prova Relativa de União Estável

Autores: Rolf Madaleno

 Apelação Cível nº 70004731964

EMENTA: Agravo interno. Dissolução de união estável. Alimentos provisórios. Falta de documentos juntados com a exordial, que serviram para o convencimento do magistrado. A escritura pública é prova contundente da união estável. Recurso improvido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Segunda Câmara Especial Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade,negar provimento ao recurso.

                          Custas, na forma da lei.

                          Participaram do julgamento, além do signatário, o Senhor Desembargador Alexandre Mussoi Moreira, Presidente, e o Senhor Doutor Ícaro Carvalho de Bem Osório, Juiz de Direito Convocado.

                          Porto Alegre, 25 de setembro de 2002

                          DR. NEY WIEDEMANN NETO,

                                              Relator

                                              RELATÓRIO

            J. A. V. M. interpõe agravo interno da decisão monocrática de fls. 53/56, que negou seguimento ao agravo de instrumento por ele interposto contra decisão interlocutória proferida nos autos da ação de da união estável movida por S. M. F. D. A.

            Em suas razões, sustenta que o único motivo que teria levado o juiz a arbitrar alimentos para a agravada estaria no parecer ministerial de fl.28. Afirma que a sugestão presente no parecer relativa ao arbitramento de alimentos teria sido feita em razão da dependência da agravada no que concerne à sua declaração de renda. Seria irrelevante a pesquisa da documentação que motivou o juiz a tomar a decisão. Alega que a agravada tem capacidade de viver com o resultado do seu próprio trabalho. Não seria plausível a fixação liminar de verba alimentar em razão da necessária instrução. Requer seja dado provimento ao recurso.

            É o relatório.

VOTO

            Prefacialmente, ratifico a decisão monocrática “in totum”:

“Em decisão monocrática, na forma do art. 557 do CPC, nego seguimento ao presente agravo de instrumento, por ser ele manifestamente improcedente.

Com a exordial, foram juntados dezenove folhas de documentos da segunda instância e que serviram para o convencimento do julgador de primeiro grau, para o propósito de concessão de alimentos provisórios à agravada.

Tudo indica que tais documentos deram suporte à comprovação da união estável existente entre as partes e da situação atual da agravada, da necessidade do auxílio alimentar do ex-convivente.

Sem percorrer o mesmo caminho do magistrado a quo na análise da prova, fica muito difícil desconstituir a sua decisão, que não pode ser desautorizada senão por rigorosa avaliação da mesma prova que deu lastro ao seu raciocínio.

E os documentos e argumentos trazidos de modo unilateral, pelo agravante, não são robustos o suficiente para conduzir à conclusão oposta, por ele pretendida.

Foi dito pela agravada na exordial, e não foi refutado pelo agravante, que ela não está trabalhando atualmente.

É fato que as evidências indicam ter ela possibilidade de nova inserção no mercado de trabalho, pois consta ser formada em Administração de Empresas e já trabalhou antes, alegando ter-se demitido para acompanhar o companheiro na sua carreira, tornando-se “do lar”.

A mudança abrupta da dinâmica familiar, com o da união estável, motivada pelo agravante, que não refuta tal iniciativa que lhe é imputada pela agravada, deixou-a em situação de dificuldade financeira, porque se agora é “dona-de-casa”, não terá como prover o seu sustento de pronto.

É discutível a duração de tal pensionamento, em face da necessidade alimentar da agravada, não se afigurando razoável seja definitiva, em face da sua própria condição pessoal, que torna possível a reinserção no mercado de trabalho.

Todavia, isso é matéria que depende da própria instrução processual, afigurando-se correta a decisão que, liminarmente, concedeu os alimentos, já que agora a agravada deles necessita para a sua mantença.

E, a respeito da escritura pública declaratória acostada aos autos, não me causa estranheza o fato de não estar assinada pelas partes, o que impressionou o MP de 1º grau, já que assinado deve estar o livro de registro de escrituras, tratando-se o documento de um mero traslado, que só vai assinado pelo próprio tabelião, que tem fé pública.

E dito documento é prova contundente da existência da união estável, seu período e da própria obrigação alimentar assumida pelo agravante, no patamar de dez salários-mínimos e mais R$1.500,00 de auxílio-moradia, quiçá muito superior aos 15% de seus ganhos líquidos, no que a decisão agravada foi-lhe mais favorável que o compromisso assumido extrajudicialmente.

E a Lei nº 9.278/96, que regulou a união estável, traz estipulações que admitem o contrato escrito entre as partes, dispondo acerca de tal relacionamento, inclusive no tocante ao regime de bens e administração do patrimônio comum do casal.

Considerando o princípio da autonomia da vontade e a ausência de qualquer alegação por parte do agravante acerca do vício de sua manifestação, na escritura pública, inclusive firmada na presença de duas testemunhas, não vejo como, em sede de exame “liminar”, afastar o conteúdo das próprias declarações do agravante e os compromissos por ele assumidos, inclusive para efeitos previdenciários e de mantença de dependência em plano de saúde, sem que isso importe na própria caracterização de falsidade ideológica, o que ainda não foi aventado.”

            Trata-se de agravo interno manejado contra decisão monocrática denegatória de seguimento de agravo de instrumento. Acontece que, diferentemente das alegações do agravante, foram exatamente as folhas não juntadas no instrumento a causa do posicionamento do Ministério Público. Este, por sua vez, motivou a decisão atacada pelo agravo de instrumento. Se o parecer ministerial serviu de fundamento para a decisão e as folhas faltantes serviram de baluarte na produção do parecer, pode-se auferir que os documentos não apresentados em sede recursal formam a base do convencimento do magistrado.  

            Ainda há a cópia da escritura pública, que serve de prova contundente da relação, na qual o valor se mostraria superior ao arbitrado na decisão interlocutória. Esta veio, em verdade, beneficiar o agravante.

            Voto, portanto, pelo improvimento do recurso.

            DR. ÍCARO CARVALHO DE BEM OSÓRIO – De acordo

            DES. ALEXANDRE MUSSOI MOREIRA (PRESIDENTE) – De acordo

1.      O CONTRATO DE CONVIVÊNCIA

O contrato de convivência encontra previsão legal no artigo 1.725 do Código Civil, assim como já tinha expressa regulamentação no 5º, da Lei n. 9.278/96, na medida em que o reconhece para efeito de eventualmente afastar a presunção de condomínio dos bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso. Conforme Álvaro Villaça Azevedo,[1] se os conviventes nada pactuarem, tornam-se condôminos por força da lei. É a divisão dos aqüestos, resultante do trabalho e da colaboração comum que decorre naturalmente da convivênciamore uxorio, como ao seu turno e ao seu tempo já procediam doutrina e jurisprudência no embate casuístico do verbete 377 sumulado pelo STF, como é de ser visto na Apelação Cível n. 157.130 do TJSP, com essa ementa:[2]“CASAMENTO: Regime de bens. Separação legal. Comunicação dos aqüestos. No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento, independentemente da prova, ou, mesmo, da existência do trabalho comum dos cônjuges, decorrendo essa comunhão como consectário do próprio casamento, instituição ou contrato sui generis, capaz de gerar as mais relevantes conseqüências, notadamente o condomínio dos bens havidos na sua constância.”

Esse, realmente o espírito do novo Código Civil, herdado da lei dos conviventes, conferindo com clareza: “uma vez reconhecida a união estável, a comunhão dos bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso.” [3]

Portanto, todo o interesse e todo o resultado útil do contrato de convivência formalizado entre um homem e uma mulher que vivam em união estável, está em estipular por escrito, os contornos das responsabilidades dos conviventes, notadamente, no campo da comunicação dos seus bens pessoais e a administração econômica desses bens, [4] com incursões eventuais, no âmbito dos alimentos e outras avenças de conteúdo econômico ou pessoal. 

Não deve ser olvidado o propósito do legislador de ver mantida uma razoável informalidade nas relações afetivas dos conviventes, tanto que lhes outorgou pela nova codificação civil, amplas e irrestritas variações contratuais, podendo estipular sobre quase tudo o que bem entenderem e, recontratarem a qualquer tempo, sobre tudo aquilo que entenderem de modificar nas suas relações econômicas e pessoais. Nem é preciso recorrer ao Judiciário para a mudança do contrato e do regime de bens, em petição conjunta e fundamentada, como a lei  exige para o casamento no § 2º, do artigo 1.639 do Código Civil de 2002.

Fácil deduzir, portanto, que a configuração da união estável independe e está desatrelada de um formal contrato de convivência, como casamento de fato que é, sua formação acontece aos poucos, dia após dia, agindo como se casados fossem e respaldado na convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família.[5]

O contrato escrito na união informal não tem nem de longe, o peso de uma contrato conjugal, pois sua eficácia é restrita aos conviventes contratantes, pois, como assevera com absoluta propriedade Francisco Cahali:[6] “ninguém é obrigado a aceitar a situação de convivência afirmada pelo casal.” (....) “Incide, pois, o comando contido no art. 131 do Código Civil,[7] segundo o qual, as declarações constantes de documentos assinados presume-se verdadeiras em relação aos signatários”, acrescentando o parágrafo único : “Não tendo relação direta, porém, com as disposições principais, ou com a legitimidade das partes, as declarações enunciativas não eximem os interessados em sua veracidade do ônus de prová-las”, regra esta reproduzida integralmente pelo novo Código Civil em seu art. 219.”                                    

Isso tudo leva à inarredável conclusão de não ser juridicamente perfeito, definitivo e inoponível o contrato de convivência, mesmo se formatado por instrumento público e com sua correlata inscrição em Cartório de Títulos e Documentos. Merece mais uma vez, pontual destaque a lição de Cahali,[8]quando observa que, este documento com constituição e inscrição por procedimento público, “não é oponível erga omnes, inexistindo previsão para tanto, de tal sorte que esse documento não basta para se impedir o questionamento da união por terceiros, até porque, como visto, a convenção não cria a união estável, e a sua eficácia, até para as partes, está condicionada à caracterização da convivência.”

2.      A EFICÁCIA RELATIVA DO CONTRATO DE CONVIVÊNCIA

A questão posta sob análise está vinculada à passagem do voto sob comento, quando assevera ser a escritura pública de convivência “prova contundente da existência da união estável, de seu período e da própria obrigação alimentar assumida” (....), porque “a Lei nº 9.278/96, que regulou a união estável, traz estipulações que admitem o contrato escrito entre as partes, dispondo acerca de tal relacionamento, inclusive no tocante ao regime de bens e administração do patrimônio do casal.”

Embora seja inquestionável que o contrato de convivência com expressa previsão legal tenha valor entre os contratantes, também é inquestionável que está destituído de qualquer repercussão erga omnes, não podendo e nem sendo concebível que a situação jurídica contratada e livremente emoldurada pelos conviventes imponha-se sobre terceiros e mais do que isso, torne insofismável e como verdade absoluta, inconteste e insuplantável, o seu conteúdo conrtatual.

       Lúcidas as observações indicadas por Francisco Cahali,[9] quando faz ver que o pacto dos unidos estavelmente não altera absolutamente em nada, a relação dos conviventes com terceiros, até mesmo porque, não há como impor a terceiros as regras fechadas e que buscam tecer os interesses da realidade ou não dos conviventes e por eles retratada no seu contrato de convivência. Até mesmo pelo fato desse contrato recolher com freqüência o malicioso desejo de criar justamente, embaraços ou prejuízos a terceiros, como disso é clássico exemplo, os bens de um convivente que servem como lastro de crédito concedido por terceiro e num passe de mágica a garantia muda de mãos em novel regime de inacessível comunicação ao seu ex-proprietário.

Significa concluir sem risco algum de equívoco, que a verdade colhida em contrato privado de convivência, mesmo quando produzido sob a chancela de notário, não se reveste apenas por esses detalhes, como documento cercado de verdade absoluta, ou como prova contudente da existência da união estável, como destaca o aresto, e muito menos o seu período pode ser tido como incontestável, mesmo operando apenas entre os firmatários da avença. Assim deve ser entendido, como faz ver Cahali com a sua habitual clareza e com a facilidade de seu inteligente raciocínio, que, embora o contrato dos conviventes demonstre “o reconhecimento recíproco da convivência, influenciando, sobremaneira, na aceitação pública da situação pessoal das partes.” (....) “é uma prova iuris tantum, admitindo, por qualquer meio, a demonstração contrária à situação de fato nela retratada.”[10]

E isso pode ser feito sobretudo, pelo natural interesse de qualquer um dos primitivos contratantes quando se trata justamente, da discussão dos efeitos do contrato em juízo, principalmente pela circunstância dessa avença pressupor a assunção de direitos e de obrigações condicionados à real existência da união estável, desse casamento dito informal, mas que deve ser reconhecido não pela caneta dos signatários quando firmam a escritura pública de convivência, mas sim, pela ocorrência dos pressupostos estipulados na lei, particularmente do artigo 1.723 do Código Civil vigente, cujo dispositivo derrogou o artigo 5º da Lei nº 9.278/96. Mostrando os fatos, que a união estável não se constitui pelo contrato e sim pela configuração da convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

Por sinal, qual seria a reação de um tribunal ao admitir a auto-suficiência de um contrato púbico de união estável entranhando dos vícios e impedimentos exemplificados nos parágrafos 1º e 2º do artigo 1.723, do Código Civil ? Não haveria como reconhecer a união estável declarada no contrato de convivência, lembra Paulo Martins de Carvalho Filho, citado por Cahali, porque:[11] “A união estável não se constitui por contrato; estabelece-se ex vi legis, pela reunião presente dos elementos fáticos previstos nos art. 1º.  ( refere-se o autor à Lei nº 9.278/96, equivalente ao artigo 1.723 do CC de 2002) Pode-se dizer que a união estável não é ato, porém fato; não é contrato, porém situação de fato; mesmo exista contrato escrito, se não ocorrer situação de fato na moldura da lei, não há união estável.”                                                               

 

* Advogado especializado em Direito de Família. Professor de Direito de Família na pós-graduação da UNISC e Ritter dos Reis. Diretor Nacional do IBDFAM. Juiz Eleitoral no TRE/RS

[1] AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 2001, p.388.

[2] RT, 203/272, indicada em nota de rodapé de n. 200, por Silvio Rodrigues, Direito Civil, Direito de Família , v. 6,: São Paulo: Saraiva, 2002, p.188. Outro aresto paradigma vem do EI 596211136, do 4º Grupo de Câmaras Cíveis, do TJRS, cujo Relator foi o Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves e indicado em nota de rodapé n.17, por Teresa Arruda Alvim Wambier, na página117 do seu texto intitulado: União estável, seguida de casamento com separação de bens e patrimônio adquirido durante a convivência e inserto na obra coordenada por Antônio Carlos Mathias Coltro: O Direito de Família após a Constituição Federal de 1988, com a seguinte ementa: “União estável é entidade familiar, e o casamento civil é tomado como paradigma para balizar as relações econômicas e pessoais entre os concubinos que vivem como se casados fossem. A participação do convivente na partilha dos bens não decorre da participação econômica, mas da condição de convivente, e o carinho, o apoio, a dedicação ao lar, os cuidados com o companheiro, o estímulo nos momentos difíceis e o compartilhar deles, o dividir sonhos e angústias, enfim, a própria arte da convivência configura justificativa moral plena para divisão do patrimônio adquirido durante a vida em comum.”

[3] MALHEIROS FILHO, Fernando. A união estável, sua configuração e efeitos, Porto Alegre: Síntese, 1996, 1ª ed.,  p.39.

[4] Sobre a administração dos bens, em comentário ao artigo 1.725 do Código Civil em vigor escreve Regina Beatriz Tavares da Silva, Novo Código Civil comentado, (Coord.) Ricardo Fiuza: São Paulo, Saraiva, 2002, p.1539: “Quanto à administração de bens, também se aplicam os princípios do regime da comunhão parcial, dentre os quais estão suas disposições gerais, contidas neste Livro, Título II, Subtítulo I, Capítulo I, no que forem cabíveis.”

[5] Essa a literal redação do artigo 1723 do Código Civil.

[6] CAHALI, Francisco José. Contrato de convivência na união estável, São Paulo: Saraiva, 2002, p.187.

[7] Refere-se ao Código Civil de 1916 e artigo 219 do Código Civil de 2000.

[8] CAHALI, Francisco José. Op. cit., p. 135-136.

[9] CAHALI, Francisco José. Op. cit., p.190-191.

[10] Idem, Op. cit., p.190-191.

[11] Ibidem, Op. cit., p.144 – CARVALHO FILHO, Paulo Martins de. A união estável, RT734/31.